ENTREVISTA
anair patrícia
Entrevista realizada para o primeiro mapeamento publicado em dezembro de 2021
Anair Patrícia é atriz e professora de Teatro. Mulher cis negra e favelada. Nascida no Morro do Papagaio e criada na quebrada de Justinópolis. Formada pelo Teatro Universitário e Licenciada em Teatro pela EBA-UFMG, pesquisa em seu mestrado os teatros negros e a formação de professores.

Foto: Arquivo pessoal
Anair Patrícia
como foi e Quando você decidiu que seria atriz?
Anair: Foi na quinta série quando conheci a série literária Vaga Lumes e tomei gosto pela leitura, por meio da professora de Português Elzinha (branca, meia idade), ela dividiu a turma em grupos e cada grupo deveria ler um livro da série e recontar essa história para a turma, meu grupo optou pela dramatização da história, sem nunca ter ido ao teatro, assistido ou participado de alguma encenação, arriscamos a ideia de escrever e encenar, fui a responsável em criar o texto e interpretar junto com duas colegas, daí pra frente em todas as disciplinas, eu não me contentava em fazer cartazes, sempre criava um poema ou pequena cena. Foi nesta mesma época que meu pai ganhou uma máquina de escrever, eu, que tinha na minha casa apenas o livro “Bíblia sagrada” e um catálogo telefônico, comecei a escrever histórias. A primeira contava de uma menina que sonhava voar.
Das histórias comecei a escrever um jornal para a Escola. A professora Elzinha começou a me indicar outros livros e um dia levou um flyer da Casa de Cultura, me disse da existência de um curso de teatro que acontecia lá e que eu poderia me inscrever. Empolgada, fui até o local com minha mãe e me matriculei. Durante três meses fiz o curso gratuito com o professor Jota Marttins, um professor negro, meu primeiro professor de teatro, ele me instigou a escrever a peça que apresentamos no final do curso para nossos pais. No dia da apresentação o professor Jota Marttins pediu para conhecer meus pais e disse a eles para investir em mim. Pouco tempo depois esse professor faleceu e deixou em mim a “sementinha” do fazer teatral. A única referência de meus pais era o curso que tinha propaganda na televisão o NET – Núcleo de Estudos Teatrais e lá cursei por dois anos as aulas de teatro depois participei de algumas peças em Belo Horizonte. Neste período eu falava que iria prestar vestibular para o curso de História e queria começar por contar histórias dos negros da favela. Pra provar que na favela não tem só criminoso como todo mundo acha.
Eu era bem estudiosa, e nessa época já tinha amor por fazer teatro. Foi nesse mesmo período que admirava mais intensamente em mim o desejo por outras mulheres. Sofri por conta disso, durante o recreio eu me escondia na biblioteca ou ficava no corredor atrás da diretoria, porque vez ou outra eu recebia uma pedrada e nunca tive coragem de levantar o rosto pra ver de onde vinha aquela pedra. Eu sempre desconfiei que era por conta de ser sapatão, mas até então nunca recebi xingamentos explícitos, somente pedradas. Chegado o ano de prestar vestibular, não tentei História e também não passou pela minha cabeça fazer Teatro, primeiro por que não sabia da existência de uma faculdade de Teatro e segundo é que nunca pensei ser possível seguir na vida artística, achava que isso não era pra mim, eu não era parecida com as atrizes referências que eu via até então.
Fiz cursinho comunitário perto de casa por um ano e tentei ENEM, consegui uma bolsa de 50% para o curso de Relações Públicas – RP numa faculdade particular, comecei a trabalhar com telemarketing para pagar os outros 50% da mensalidade e a passagem, cursei RP por um semestre, frequentava as aulas vestida de roupa social e cabelos muito bem escovados e pranchados, até que um dia no final na aula segui para o ponto de ônibus na Praça da Estação, ali acontecia a apresentação de um espetáculo pelo Festival Internacional de Teatro (FIT). Eu fiquei extasiada com a peça e tive certeza que era Teatro o que queria fazer, aguardei o término de semestre e fui chamada por uma amiga pra tentar o Teatro Universitário da UFMG – T.U., o receio era grande, mas tentei e passei, larguei o curso de Relações Públicas e o emprego, iniciei os estudos no T.U e comecei a trabalhar com Teatro Mobilização.Lá me apaixonei por uma das alunas, meu primeiro grande amor platônico por uma sapatão. Depois segui pra graduação, mestrado e sigo correndo atrás desse sonho até hoje.
O que você tem investigado ultimamente?
Anair: Hoje integro a Breve Cia, onde pesquisa dramaturgias negras, direção de cena e pedagogias de Ensino do Teatro, atuando como atriz nos espetáculos “E se todas se chamassem Carmen?” e “Uma, Outra”, nas cenas curtas “Dar à luz” e “Uma Outra”, além de dirigir a peça "Abismo'', ademais componho as equipes artístico-pedagógicas da Breve Cursos Livres e do Serviço Especializado em Abordagem Social- SEAS da Secretária de Assistência Social do município de Belo Horizonte, onde atuo como arte Educadora com a população em situação de rua.
Com advento da pandemia comecei a investigar o audiovisual por meio de uma série de contos eróticos intitulada Liberte-nagem que defino como uma insubordinação ao calar-se. Da minha boca lanço palavras-afetos de insubmissão.
A maioria de nós lésbicas tivemos que manter silêncio sobre nossos desejos, emoções e afetos. Algumas por receio da família, outras por terem ouvido a vida toda que era pecado, para serem aceitas no emprego, para não correrem o risco de perder o lar. Cada uma na sua pluralidade vivendo as violências da lésbofobia e do silênciamento. Eu, por muitos anos calei minha boca, todavia venho construindo pela dor, pelo amor, junto as companheiras que vivi e também junto a amigas/amigues e tantas outras/es a coragem pra falar de meus desejos, amores, libertinagens...
Em tempos que a máscara cobre a boca e que a dor da um nó na garganta, uso de minha boca pra me refugiar. Liberte-nagem é jorrar pela boca, escorrer pelos lábios e lançar doce e quente pelas brechas do meu riso narrativas libertinas ou de liberdade.
Anair: Hoje integro a Breve Cia, onde pesquisa dramaturgias negras, direção de cena e pedagogias de Ensino do Teatro, atuando como atriz nos espetáculos “E se todas se chamassem Carmen?” e “Uma, Outra”, nas cenas curtas “Dar à luz” e “Uma Outra”, além de dirigir a peça "Abismo'', ademais componho as equipes artístico-pedagógicas da Breve Cursos Livres e do Serviço Especializado em Abordagem Social- SEAS da Secretária de Assistência Social do município de Belo Horizonte, onde atuo como arte Educadora com a população em situação de rua.
Com advento da pandemia comecei a investigar o audiovisual por meio de uma série de contos eróticos intitulada Liberte-nagem que defino como uma insubordinação ao calar-se. Da minha boca lanço palavras-afetos de insubmissão.
A maioria de nós lésbicas tivemos que manter silêncio sobre nossos desejos, emoções e afetos. Algumas por receio da família, outras por terem ouvido a vida toda que era pecado, para serem aceitas no emprego, para não correrem o risco de perder o lar. Cada uma na sua pluralidade vivendo as violências da lésbofobia e do silênciamento. Eu, por muitos anos calei minha boca, todavia venho construindo pela dor, pelo amor, junto as companheiras que vivi e também junto a amigas/amigues e tantas outras/es a coragem pra falar de meus desejos, amores, libertinagens...
Em tempos que a máscara cobre a boca e que a dor da um nó na garganta, uso de minha boca pra me refugiar. Liberte-nagem é jorrar pela boca, escorrer pelos lábios e lançar doce e quente pelas brechas do meu riso narrativas libertinas ou de liberdade.
Durante sua trajetória no teatro você trabalhou com muitas sapatonas?
Anair: Nossa de supetão assim acho que só estudei com Michele Sá na época do T.U., estive .alguns momentos num processo de montagem com a Éle Fernandes, acho que trabalhei mais com as bichas e com as mana bi do que com as sapatona.

Anair Patrícia e Renata Paz na cena 'Uma, Outra da Breve Cia
Foto: Daniel Alvarez
Você, através da Breve Cia, fez o espetáculo Uma, Outra que trata sobre codianos, afetos e corpas pretas, sobre amor: mulheres que amam mulheres. Conta um pouco sobre a criação desse espetáculo e como foi pra você participar desse processo
Anair: Uma outra fala de amor entre mulheres não necessariamente só de relações afetivas sexuais.
Tem sido um processo de mergulhos profundos, daqueles que tiram o ar, mergulhos dentro, mergulhos em minha ancestralidade, busca pelo colo e também processo de rememorar todas as minhas partidas e dores junto nas minhas relações com a minha mãe, com as minhas avós, com as minhas tias e primas e também re-viver as minhas relações amorosas com as mulheres que já passaram pela minha vida.
Na Breve a oralitura se faz presente em todos os trabalhos. Então tudo tem muito de nossas vivências.
Além disso estamos pesquisando o jogo da capoeira Angola e também as energias de Iansã e oxum, e não tem como trabalhar com essas energias sem desaguar, então tem sido um processo de desaguar muito, tanto pela própria dramaturgia feita por Amora Tito, quanto pelo nosso processo de trocas de memórias afetivas. Estou numa fase de vida particular que venho me recuperando de uma separação, eu findei uma relação longa, saí de um casamento e falar de amor depois desse processo de separação tem sido um remendar-me e rasgar-me constantemente. Uma, Outra tem sido Cura e também desafio. Ta sendo um desafio agridoce. Tenho transbordado...
em sua opinião, como os teatros têm sido utilizados
para visibilidade da existência sapatão?
Anair: Eu conheço pouquíssimos coletivos que vem trazendo essa temática sapatão para os seus trabalhos.
Eu sempre vi as gay se organizando muito bem, trazendo suas questões pra cena e criando espaços de debate.
O contato com cenas com temática sapatão é algo muito recente pra mim, não tenho memória de ter assistido nada antes da cena curta do coletivo Fanchecleticas, lembro que assisti o trabalho na casa anômala e fiquei extremamente feliz. Eu falei com as meninas que estavam comigo "nossa até que enfim eu vejo uma cena sapatão!" E me deu vontade de falar mais sobre essa vivência que me atravessa.
UEu comecei a falar sobre sapatonices lá na cena curta sapatinhos vermelhos, criada lá na época do T.U (Teatro Universitário - UFMG), mas depois não me debrucei nessa temática, foquei minhas pesquisas nas questões relacionadas a raça, gênero e classe social só hoje eu me sinto à vontade para trazer a questão da orientação sexual explicitamente em meus trabalhos.
Essa insterseccionalidade é muito foda, temos que trazer esse debate né. Foda demais, demorei esses anos todos pra dar conta. Por falta de coragem? Pro falta de conhecer outras manas do vale que produzem? Por outras urgências? Não sei, só sei que agora eu consigo tratar isso e tô me jogando nas pesquisas e amando ver as sapatonas jogando a real em seus trampos.