ENTREVISTA
kami soares
Minas Gerais / São João del Rei
Entrevista realizada em Março de 2025.
Kami Soares, 29 anos, é artista, produtore e comunicadore mineire, neurodiverse e desobediente de gênero.É Bacharel em Teatro pela UFMG e está mestrande no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UFSJ, onde pesquisa, através de uma perspectiva queer/cuir a presença sapatão no teatro. Kami desenvolve trabalhos principalmente no campo da atuação, da performance, da dramaturgia, da produção e da comunicação voltada para projetos culturais. É co-fundadore da Mercuria Conecta - produtora cultural que tem como foco cultura def e queer/cuir, tendo acessibilidade, empregabilidade LGBTQIAPN+ e democratização da cultura enquanto prisma para a elaboração e execução de projetos. Desde 2022 integra o elenco e a equipe de comunicação do espetáculo Defesa- trabalho no qual também atua como dramaturgue. Kami colabora como pesquisadore e social media na plataforma Sapatão no Teatro.

como o teatro entrou na sua vida?
O teatro entrou na minha vida na infância, através da escola. Fizemos uma adaptação do Sítio do Pica Pau Amarelo no terceiro período e eu me apaixonei. A professora na época (Tia Cláudia Elísia) fez um trabalho super interessante de pesquisa em torno do teatro mineiro. Eu morava no interior e nunca tinha assistido uma peça que não fosse da escola ou da igreja. Mas de repente eu tava lá descobrindo que existia um curso de teatro na Universidade da capital, com 7 anos. Botei na época na cabeça durante essa época que quando crescesse ia atuar, dirigir, escrever, dar aula, dançar... e nunca mais tirei. E nem parei. Entre idas e vindas, essa paixão maluca se constrói, se destrói e se reconstrói todo dia.
Fale um pouco pra gente sobre sua trajetória no teatro até os dias atuais.
Com 18 anos eu me mudei pra Belo Horizonte e comecei a estudar teatro na Escola de Teatro da PUC Minas, muito influenciade por minha mãe que sabia dessa paixão antiga que nunca tinha tido espaço pra se realizar. Nessa época eu cursava letras na UFMG e decidi largar pra tentar o vestibular pro curso de teatro na mesma universidade, que entrei em 2016.
Na graduação, participei de diversos projetos de extensão e fiz parte do grupo Atuar-produzir entre 2020 e 2021, quando desenvolvi uma pesquisa de iniciação científica sobre juventudes e políticas públicas de acesso a cultura.
Entre 2020 e 2021 também fui artista residente do CEFART (Fundação Clóvis Salgado) onde desenvolvi a pesquisa Korpo-klínica: práticas para sobre-viver absurdos. A pesquisa gerou obras diversas, como a fotoperformance Despedida e a videoperformance Catedral - Aos Prantos, que também foi apresentada no Festival Internacional de Unipersonales Talca, no Chile, durante a pandemia.
Em 2021 fundei a Mercuria Conecta, produtora com a qual ainda atuo, que tem como foco teatro, mas atende diversos projetos da cultura, tanto na produção e na comunicação quanto na produção de acessibilidade.
Me formei bacharel em Teatro em 2022, tendo realizado enquanto trabalho de conclusão de curso o espetáculo Defesa, uma peça sapatão em dois atos, dirigida pela artista cuir Igui Leal e no qual contraceno (e também escrevo) com a atriz e produtora Júlia Campos. Desde 2022, o projeto circula entre temporadas independentes e realizadas através de incentivo municipal em Belo Horizonte e em 2025 iremos fazer nossa primeira circulação interestadual.
Atualmente, sou mestrande no Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UFSJ, orientade pelo prof. Dr. Alberto Tibaji, onde pesquiso a presença sapatão no teatro belorizontino.
O que você tem investigado ultimamente?
Em Defesa, estamos em um momento muito intenso de escrita de projetos. Começamos a pensar em acessibilidade estética pra além da Libras no espetáculo, o que está em fase de elaboração. Júlia e eu somos pessoas autistas e temos investigado como a neurodivergência atravessa esteticamente nosso trabalho de forma potente, o que está sendo uma experiência muito enriquecedora.
Estou entrando (hoje!) no segundo do semestre do mestrado, quando vou começar a aprofundar na minha pesquisa em torno da presença sapatão no teatro de beagá através de entrevistas e um cruzamento com minha trajetória. Ano passado, comecei a desenvolver a dramaturgia CRIATURA que perpassa a experiência de corpos cuir e DEF em contextos urbanos. Já na Mercuria, estamos, nesse momento, aprofundando nossos conhecimentos e projetos em torno de acessibilidade e cultura DEF.

Peça Defesa - Acervo pessoal de Kami
Durante sua trajetória no teatro você trabalhou com muitas sapatonas?
Trabalhei com muitas pessoas LGBTIQAPN+, mas não com tantas artistas sapatonas quanto tinha expectativa no princípio da minha carreira. Nos últimos 2 anos, por conta de Defesa, isso tem acontecido mais.
Você já atuou/trabalhou em outras peças com temática sapatão?
Meu espetáculo de formatura na Escola de Teatro PUC Minas foi inspirado (e teve o mesmo nome) no filme Maus Hábitos, do Almodóvar, que conta a história de freiras sáfadas e sáficas. Minha personagem não era abertamente sapatão, apesar de ter percebido muitos subtextos.
Em 2018 fiz a dramaturgia, assistência de direção e produção do espetáculo Bunker e da cena curta Ensaio sobre a violência, que não estão mais em circulação. Bunker, assim como a cena curta, se tratava de um espetáculo autobiográfico no qual atuavam uma atriz sapatão e uma atriz não binárie.
No mesmo ano atuei na cena curta BRASA, que girava em torno da sexualidade feminina e de pessoas sexo-gênero dissidentes, ainda que não tocasse tão profundamente na temática sapatão.
Quando fui fazer meu TCC em 2022, tinha certeza que queria fazer um espetáculo autoral e tinha certeza que queria que fosse um espetáculo de temática Sapatão. Queria colocar meu corpo em cena inteiramente, fazendo brilhar no corpo essa identidade que me constitui tanto. Defesa é uma espetáculo performativo de caráter autoficcional que conta a história de um romance sapatão.
Na sua opinião, qual a importância de se afirmar sapatão, nas coisas cria?
A palavra sapatão foi usada contra mim pela primeira vez aos 14 anos. Eu digo contra porque foi isso mesmo: uma violência. Mas mesmo sem entender muita coisa, eu comecei a entender que ser sapatão era algo muito potente. E poderoso. Quase uma ameaça. Comecei a usar a palavra. Me aproximei da teoria. E me aproximei da arte também. Era uma forma de fazer com que a experiência de ser sapatão no interior se tornasse menos solitária naquela época. Vi muitos filmes, li muitos livros, ouvi muitas músicas. Isso fez com que eu me sentisse parte de uma comunidade e ter fé que as coisas iam melhorar. Ser sapatão pra mim tem a ver com uma identidade cultural e também de gênero. Tem a ver com a forma como eu existo no mundo, onde e como dedico meu amor, meus afetos, minha força. Quando eu faço teatro sapatão, tenho a intenção de fazer uma arte que faça com que as pessoas se sintam como eu me sinto enquanto público e enquanto artista: pertencente.
Conta pra gente uma memória, uma história, uma situação
Maus Hábitos, minha peça de formatura na Escola de Teatro PUC Minas, foi uma peça sapatão dirigida por uma sapatão, a grandona da Marina Viana. Eu tinha 19 anos. Ser dirigide por uma pessoa sapatão me trouxe uma sensação de segurança muito grande pra me colocar alí. Consegui levar pro espetáculo muito de mim, muito do discurso político que acredito também. Eu lembro da alegria que foi quando eu descobri que era ela quem ia dirigir a gente, me lembro de uma amiga chegando perto no primeiro dia de aula e dizendo: Você sabia que nossa diretora é sapatão? Depois de uma semana de ensaios, eu cortei meu cabelo curtinho pela primeira vez.