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ENTREVISTA 

CAMILE DOS ANJOS

Entrevista realizada para o primeiro mapeamento publicado em dezembro de 2021

Camile dos Anjos é artista, professora e pesquisadora das artes da cena. De origem sul-mato-grossense, durante 17 anos morou no Rio de Janeiro onde fez graduação e mestrado em teatro (UniRio), foi fundadora e integrante da Cia Milongas por 10 anos e tornou-se mãe do Raul. Atualmente reside em Dourados – MS onde desenvolve trabalhos artísticos relacionados a questões de gênero e é doutoranda da UDESC com pesquisa relacionada a representações de subjetividades lésbicas no teatro.

Uma pessoa, aparenta ter meia-idade, com cabelo curto e despenteado fuma um cigarro em um retrato em preto e branco.

Foto: Arquivo pessoal

Camile

como o teatro entrou na sua vida?

Camile: Comecei a fazer teatro na escola, aos 15 anos, morava em Campo Grande – MS, por influência da minha irmã mais velha que já tinha feito um curso e disse que seria bom pra mim, pois eu estava em um momento “adolescência antissocial”. De cara levei muito a sério e logo fui indicada pelo professor a procurar o grupo da UFMS, que era mais “profissional”. Decidi então que era o que gostaria de estudar, porém nessa época não havia nenhuma escola de formação em teatro no MS, então acabei indo morar no Rio de Janeiro. Inicialmente frequentei a CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), mas pouco depois entrei na UniRio e lá fiquei.

conta um pouco da sua trajetória

Camile: Já no primeiro ano da graduação eu me reuni com outras/os estudantes (a maioria de fora do Rio) e começamos a pesquisar danças populares pernambucanas, porque era algo que eu tinha começado a ter contato ainda na Cal e tinha me apaixonado. Por acaso uma das estudantes com quem me reuni era uma bailarina pernambucana, então nos encontrávamos para dançar, íamos a encontros de bumba-meu-boi, coco de roda... e o Milongas foi se configurando em torno dessas manifestações populares, as quais eu pesquisei e pratiquei muuuito, a ponto de hoje em dia ter os dois joelhos bixados.

Essa influência das manifestações de cultura popular marcaram principalmente os primeiros processos artísticos que desenvolvi no Milongas em relação ao trabalho de corpo. Minha pesquisa buscava utilizar como matriz de composição corporal movimentações das danças populares (maracatu, frevo, cavalo-marinho, coco de roda, etc.), que a gente ia desconstruindo e reconstruindo em função das personagens que criávamos, independentemente da temática do espetáculo.

Em 2016 vim passar as festas de fim de ano na casa do meu pai, em Ivinhema – MS e, nesse momento minha vida no Rio estava muito confusa (pessoal e profissionalmente), e eu acabei não voltando. Ivinhema é uma cidade muito pequena, não havia área pra eu trabalhar como atriz que me desse algum sustento, então comecei a dar aula, primeiro em uma fundação local, depois em uma escola, até que fiquei sabendo que teria um processo seletivo para professora substituta no curso de Artes Cênicas da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados).

Dar aula na universidade foi um acontecimento incrível, não era algo que eu almejava antes, mas foi uma experiência muito transformadora. Já de início eu fiquei responsável por um componente curricular chamado Encenação II, que é popularmente conhecido como “Projetão”, no qual as/os estudantes realizam uma montagem de espetáculo com toda turma, antes de se separarem entre bacharelado e licenciatura. E eu fiquei responsável (apavorada) pelo tal projetão.

O processo dessa montagem foi muito revolucionário pra mim, eu já estava começando a me inteirar de assuntos ligados aos feminismos e questões de gênero, porém ainda muito no campo teórico e relacionando com minhas próprias vivências. E desde o início percebi que esses temas pulsavam na turma, cerca de 20 jovens, a maioria de lugares interioranos, com diferentes experiências em teatro, com muitas questões e demandas que tocavam em lugares relacionados a abuso, assédio, dissidências sexuais e desobediências de gênero. Fomos trazendo essas questões, problematizando, e tentando transformá-las em expressão artística. Então estreamos o espetáculo Este lugar está ocupado?, que tinha (talvez) como cerne essa afirmação de realmente ocuparmos os espaços que nos são negados quando não nos encaixamos nas normas cis/heteronormativa patriarcais.

Foi o primeiro espetáculo em que me coloquei como encenadora, a primeira vez que ocupei esse espaço e me afirmei nele, pois isso foi algo que percebi, eu tinha muito receito de dizer: eu sou encenadora/diretora! Muito provavelmente pela falta de referências de mulheres nesse lugar de “poder” em toda minha formação. Sempre tive como referências os “mestres do teatro” e isso me deixava muito insegura, mas aí comecei a perceber que eu também tinha essa capacidade, que sim eu era diretora/encenadora, mas comecei a me perguntar que tipo de diretora eu queria ser.

Não estava nem um pouco afim de reproduzir as referências que eu tivera a vida toda, mesmo quando dirigida por mulheres, essa posição sempre me foi apresentada com autoritarismo e hierarquia, então comecei a ir em busca de outras formas de organização de produções artísticas, mais coletivas e horizontalizadas. Depois disso fui convidada para ministrar uma oficina em um espaço cultural maravilhoso que tem aqui em Dourados, o Casulo – espaço de cultura e arte, gerido por mulheres sensacionais.

Entendi que o convite já era uma reverberação do que tinha iniciado com a montagem da UFGD, então já sabia que gostaria de tratar de questões feministas e com o maior número de mulheres na ficha técnica possível. Chegamos ao texto Quarança da Luciana Lyra, o elenco contava com três mulheres e dois homens (que foram nossos companheiros de causa). Nesse momento a necessidade já não era tão explosiva quanto no espetáculo anterior, que sentíamos vontade de gritar nossas inquietações. Em Quarança procuramos mergulhar um pouco mais no ambiente doméstico, nas pequenezas e delicadezas, nas histórias das mulheres que nos são importantes, enfim, naquilo e naquelas que normalmente são desprezadas e invisibilizadas. Mesmo sendo um texto de temática bélica, entendemos que as formas de guerrear das mulheres também são outras. Outro fator que considero muito relevante desse trabalho foi que a gente conseguiu reunir uma equipe técnica toda de mulheres, o que para uma cidade do interior é muito complicado. Existem pouquíssimas pessoas na cidade que trabalham com iluminação, por exemplo, e as que tem são homens. Mas... as duas gestoras do Casulo (Arami Mauschner e Denise Leal), que também estavam no elenco, afirmaram: “a gente faz! A gente dá conta!” E arrasaram muito. Também na cenografia, adereços, figurinos e nas operações, eram todas manas. Cito esses dois trabalhos que estive na direção porque são os que considero mais representativos, os que eu tenho maior identificação e que dialogam diretamente com minhas questões pessoais, que também são políticas e artísticas.

Você já fez alguma peça com temática sapatão?

Camile:  O mais próximo que cheguei foi uma cena de 'Este lugar está ocupado?', mas não era a temática principal do espetáculo, ali trazíamos muitas questões de desobediência de gênero e de dissidências sexuais, até porque era uma pluralidade de subjetividades precisando se expressar. Mas essa questão sapatão no teatro, é algo que comecei a atentar muito recentemente.

É muito louco como a gente passa anos da vida fazendo teatro mas não se envolve diretamente com ele. Acho que os estudos da performance junto com as consciências vindas com os feminismos e questões de gênero têm causado uma real revolução nas artes da cena (e em todas as outras áreas).

Vejo uma falência da representação, a mim não serve mais aquele teatro que me entregam um texto pronto, com uma personagem para eu representar sem que ela (a peça ou a personagem) dialogue diretamente com as minhas inquietações, meu posicionamento político. Mas isso tudo é recente, quando eu fui para o Rio de Janeiro estudar teatro meu objetivo era: fazer teatro e viver disso! O famoso “dar certo na vida”, toda essa balela que nos contam como uma verdade única, de que tudo, até a arte deve ser mercantilizada. Leva tempo para desconstruir. Além da escassez de referências, nesses 17 anos de Rio de Janeiro eu assisti apenas uma peça com temática lésbica. E também, certamente, o processo opressor de armário, outra coisa que levou algum tempo para se desconstruir.

Grupo de pessoas com roupas extravagantes em um palco. A foto parece ser de uma apresentação teatral ou show.

Este lugar está ocupado?

Foto: Arquivo pessoal Camile

Sei que atualmente, você iniciou o Doutorado e sua pesquisa está relacionada com a busca de representações lésbicas no teatro, é isso mesmo? Conta pra gente um pouco mais sobre o que é/será esta pesquisa?

Camile: Então, o que vai ser ainda é difícil de responder, mas posso te falar de minhas motivações e no que tenho pensado atualmente. Quando propus um projeto de pesquisa sabia que queria falar sobre mulheres, sobre teatro feminista e dialogar com as revoluções (pessoais e globais) que esse posicionamento político tem causado.

A máxima de que “o pessoal é político” me é muito cara e norteadora. Pensei então como isso tudo reverberava em mim e, talvez uma das maiores benesses que me tenham acontecido, foi a de entender meu amor pelas mulheres e o orgulho que existe em ser uma mulher lésbica. Entender que o corpo lésbico é um corpo político e que as relações afetivas que tenho desenvolvido com outras mulheres são atos de fortalecimento de uma rede solidária e de resistência.

Comecei então a me questionar sobre as peças com temática lésbica que eu conhecia, as representações dessas subjetividades no teatro e pela primeira vez me dei conta do tamanho da invisibilidade.

Mas percebi também, depois de ir atras de algumas dramaturgias, que o que havia sido produzido não me contemplava, me deparei com muitas produções em que a presença de homens na direção e/ou na dramaturgia era constante; com muitos estereótipos da mulher “mal amada” ou no mínimo assexualizada; com tramas que passavam a ideia “pedagógica” de que sapatão boa é aquela que morre no final...

Mas também me deparei com uma peça que considero importante de receber maior atenção, um texto da Vange Leonel chamado As Sereias da Rive Gauche, não porque eu considere um texto exemplar ou maravilhoso, mas acho que ele é relevante por ser uma das poucas produções (com as quais eu tive contato até agora) formada só por mulheres (dramaturgia, direção e elenco) e por trazer à cena sete mulheres lésbicas em suas múltiplas subjetividades, personagens essas inspiradas em artistas reais, lésbicas, que conviveram em Paris na década de 20.

Apesar de eu ter algumas críticas ao considerar a dramaturgia em si, considero um texto que propõe algo fora da curva do que vinha sendo feito nos primórdios dos anos 2000, quando foi realizada a temporada em São Paulo, e por isso merece uma atenção dos estudos acadêmicos, para que componha a esfacelada história do teatro lésbico brasileiro, que precisa ser escavada e registrada.

Uma outra vertente dessa pesquisa pretende investigar o que eu gostaria de trazer à cena... não sei ainda, mas tenho investigado possibilidades. Penso naquilo que as relações e vivências lésbicas produzem enquanto sabenças próprias, daquilo que nos coloca enquanto rachaduras (desculpe o trocadilho) desse sistema colonial cis/heteronormativo patriarcal.

Nossas relações com as nossas corpas, de aceitação da beleza e santidade individual de cada uma, nos esquivando e rompendo com o padrão de beleza hegemônico impostos às mulheres como forma de escravização; de como descobrimos as possibilidades de prazer afetivo e sexual, fora da norma cis/hétero, que não se relaciona nem com “ocupar o lugar do homem” ou ser objeto de fetiche “do homem”, ou seja, que nada tem a ver com o umbigo cis/hétero masculino.

Penso ainda nas redes que construímos - acho o rebuceteio revolucionário, por exemplo. Enfim, tenho me concentrado bastante nisso, naquilo que temos produzido como potência e como poética. E daí transformar isso em arte, mas a questão é essa, já sei o modelo do que não me contempla, sigo então nessa busca de uma nova fabulação sapatão - faço referência aqui à Prof. Dra. Dodi Leal, que nos sugere a busca de Fabulações travestis sobre o fim (2020).

Você acha que existe um apagamento histórico da memória lésbica no âmbito do teatro? Ou você acha que existem poucas produções?

Camile:  As duas coisas. Penso que há muito pouco tempo as mulheres começaram a ganhar espaço no teatro, digo espaço real de expressão, historicamente ligado às funções de dramaturgia e direção.

Creio que estamos ocupando esses espaços, na verdade, acredito que estamos quebrando com esses espaços hierárquicos que já não nos interessam e produzindo outras formas de organização e de expressão. Trago mais uma vez a mana Dodi que diz que as mulheridades estão realizando uma transição de gênero da área, ou seja, o teatro está se afirmando teatra (LEAL, 2018).

Entendo então que precisamos atacar nas duas frentes, a de escavar as produções que foram soterradas ao longo da história patriarcal, e também produzir, produzir, produzir e visibilizar quem produz. Trago também as palavras da Audre Lorde (outra mana que tem me acompanhado muito) “Tranformar o silêncio em linguagem e em ação” (2019).

Quais ações você tem criado para contornar a falta de referências bibliográficas e registros históricos sobre essa temática?

Camile:  Tenho acionado muito as redes, aqui digo tanto as redes virtuais mas também as redes de manas. Acho que trabalhos como esse, que vocês estão desenvolvendo, são fundamentais para o fortalecimento dessas trocas. Mas também tenho me apoiado teoricamente em conhecimentos que propõem epistemes outras, transgressoras, ou se construíram independentes do conhecimento hegemônico, como os estudos trans/travestis, indígenas, negros, feministas, decoloniais... enfim, estou em busca de diálogos com outras formas de existência e de pensamento que se afastem, que quebrem, que explodam a norma falida construída pelo capitalismo colonialista (cis/hétero/branca/macha/especista...) e que proponha outras possibilidade de (con)vivências.

Por outro lado, quais boas surpresas esta pesquisa te trouxe?

Camile:  Muitas!! Principalmente no que diz respeito aos encontros, como esse nosso. Mas um acontecimento curioso foi em relação As Sereia da Rive Gauche. Já faz uns anos que flerto com essa pesquisa, e desde o início, quando colocava no google “teatro lésbico/sapatão”, sempre aparecia artigos, divulgação e outras coisas que falavam sobre essa peça, mas eu nunca conseguia o texto para ler. Daí, um dia estava lendo a dissertação da Camila Grillo (2019), em que ela faz um levantamento de espetáculos com temáticas sobre dissidências sexuais e desobediências de gênero, que aconteceram em São Paulo no período de 2012 a 2018, justamente pensando na representatividade lésbica desses espetáculos.

E ela traz uma entrevista com duas atrizes que participaram da montagem das Sereias (apesar de não estar dentro do período da pesquisa dela), para falarem sobre essa invisibilidade e etc. E daí ela coloca umas fotos da montagem, e eu, observando as fotos, identifiquei uma amiga querida do elenco, a Gina Tocchetto, que hoje em dia mora aqui em Dourados também.

Imediatamente liguei pra Gina e desde então temos conversado muito sobre a montagem, ela tem bastante material a respeito, foi um encontro bem lindo que deve gerar uns frutos por aí.

Referências citadas

GRILLO, Camila. A visibilidade lésbica nos espetáculos teatrais da cidade de São Paulo/SP entre 2012 e 2018. Dissertação (Mestrado em filosofia). Universidade de São Paulo, 2019.

LEAL, Dodi. Performatividade transgênera: equações poéticas de reconhecimento recíproco na recepção teatral. Tese (Doutorado em Psicologia Social). Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2018. LEAL, Dodi. Fabulações travestis sobre o fim. Conceição | Conception, Campinas, SP, V.9, p.1 - 22, 2020 LEONEL, Vange. As sereias da Rive Gauche. São Paulo, Editora Brasiliense, 2002. LORDE, Audre. Irmã outsider. 1ª edição Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

"Trago mais uma vez a mana Dodi que diz que as mulheridades estão realizando uma transição de gênero da área, ou seja,
o teatro está se afirmando teatra (LEAL, 2018)."
Camile dos Anjos

"vejo uma falência da representação, a mim não serve mais aquele teatro que me entregam um texto pronto, com uma personagem para eu representar sem que ela (a peça ou a personagem) dialogue diretamente com as minhas inquietações, meu posicionamento político." Camile dos Anjos

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